sábado, 28 de novembro de 2009

LXXXVII - Acerca de clichês da estirpe de "a gente recebe aquilo que dá" e da desilusão do mundo (flashback # 7 - 07/05/2008).


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§ 87





Há exceções incompreensivelmente grandes; a diferença de individualidades é enorme; mas, em conjunto e conforme já se disse, o mundo vai mal: os selvagens se entredevoram e os civilizados enganam uns aos outros, sendo a isso que se chama a marcha do mundo. (Arthur Schopenhauer, Aforismos para sabedoria na vida, cap. V, C)


Eu vejo aqui as pessoas mais fortes e inteligentes.
Vejo todo esse potencial desperdiçado.

Que porra é essa, uma geração inteira de garagistas, garçons, escravos de colarinho branco.
A propaganda põe a gente pra correr atrás de carros e roupas.
Trabalhar em empregos que odiamos para comprar merdas inúteis.
Somos uma geração sem peso na história.
Sem propósito ou lugar.
Nós não temos uma Guerra Mundial.
Nós não temos uma Grande crise.
Nossa Guerra é a espiritual.
Nossa crise, são nossas vidas.
Fomos criados através da tv para acreditar que um dia seriamos milionários, estrelas do cinema ou astros do rock.
Mas não somos.
Aos poucos tomamos consciência do fato.
E estamos muito, muito putos.

Você não é o seu emprego.
Nem quanto ganha ou quanto dinheiro tem no banco.
Nem o carro que dirige.
Nem o que tem dentro da sua carteira.
Nem a porra do uniforme que veste.
Você é a merda ambulante do Mundo que faz tudo pra chamar a atenção.

Nós não somos especiais.
Nós não somos uma beleza única.
Nós somos da mesma matéria orgânica podre, como todo mundo.

Escolha não ter uma TV grande
nem baixo colesterol
nem um abridor elétrico de latas
nem plano de saúde e dentário
e muito menos uma casa de dois andares numa rua arborizada e filhos que só tiram A+.

As coisas que você possui acabam te possuindo.
Você só é realmente livre após perder tudo.
Pois ai não terá o que perder, e, enfim, encontrar-se-á livre.


Tyler Durden (Em O clube da Luta)


Eu estava conversando com uma colega de trabalho (ela tem uns 25 anos), quando ela, em uma nova tentativa de me dar uma "lição de moral" (1), soltou o lugar-comum: "A gente recebe o que a gente dá". Muito bem, o que as pessoas querem realmente dizer com isso? Que, em última instância, recebemos o mal por que praticamos o mal, dessa forma o nosso sofrimento é, em última instância, causado por nós mesmos. Trata-se do velho golpe de tentar fundamentar a moral sobre o egoísmo. (O lugar onde eu trabalho é cheio de gente subserviente, que fica se justificando o tempo todo, como se pedisse desculpas por existir. (2))

Mas as pessoas que repetem esse clichê em geral são estúpidas o bastante para não perceber o óbvio (e se percebem, então fingem não perceber): que se um indivíduo recebe o que dá, ele, obviamente, dá o que recebe; e que se nós regredirmos esse ciclo de dar e receber nós inevitavelmente chegaremos a um momento inicial no qual o indivíduo "recebeu" antes de "dar": dos pais, da escola, da sociedade, enfim, do mundo.

Não é difícil perceber que a intenção desse clichê é colocar a responsabilidade desse processo sobre o próprio indivíduo, transformando-o de vítima em algoz, ou seja, após receber tanto mal do mundo e, então, responder com mais mal e, assim, receber mal de novo... o indivíduo é então informado que, por fim, a culpa pelo mal que ele recebe é, afinal de contas, dele próprio, já que ele tinha dado mal antes (e sobre o mal que recebera anteriormente nada lhe é dito), como se ele fosse também responsável pelo mundo que já existia antes dele.

Após saber de tudo isso, cabe agora ao indivíduo o desafio hercúleo de quebrar esse ciclo vicioso, já que "o mundo" certamente não o quebrará para ele. Ou seja, agora o indivíduo, um "adulto responsável e maduro", terá que responder ao mal que receber com o bem, na esperança de receber, então, e pela primeira vez, o bem também. Cabe ao indivíduo a responsabilidade de quebrar um ciclo vicioso que ele não começou. Mas essa é a vida, essa bosta.

É claro que eu, pessoalmente, nem mesmo acredito que esse clichê, como ocorre com a maioria dos clichês, tenha uma validade estatisticamente significante. Trata-se de mais uma coleira para o povo, mais uma cenoura para o cavalo. Ou alguém aqui acredita realmente que o mundo é dos bons e dos justos? Já cansei de fazer o mal e receber o bem, já cansei de ver o mal sendo recompensado com o bem (3). Porque uma análise fria e mais detalhada da realidade mostra que "a verdade" geralmente está justamente na direção oposta da indicada pelos lugares-comuns.

Pois a verdade é que a maioria das pessoas que perpetra o mal contra os outros tendo em vista o próprio bem acaba por receber - impunemente - o próprio bem que almejava: no mundo real, o crime, desde que perpetrado com a devida astúcia, recompensa, e muito! Aqueles que realmente acreditam que nossas sociedades (sejam ocidentais ou orientais) estão fundadas sobre valores nobres e sublimes não conhecem a história da humanidade, ou são muito estúpidos para interpretá-la.

Contra essa pretensa sabedoria que tenta fundamentar a moral, o "fazer o bem", sobre o egoísmo, o "receber o bem", nós temos a filosofia schopenhauriana, cujo discernimento está para sempre interditado à maioria da humanidade; o que, aliás, vem a ser uma testemunha adicional da miséria humana...

Outro lugar-comum, muito parecido com o anterior, é aquele que diz que "o mal que a gente faz volta para nós". Na verdade é a mesma afirmação que a anterior, mas dessa vez acrescenta-se uma espécie de princípio divino (geralmente o velho e bom deus, esse pau para toda obra) que se responsabiliza por recompensar o justo e castigar o injusto. Como ninguém mais, fora poucas exceções, acredita sinceramente em paraíso e em inferno, então nós regressamos ao mais grosseiro judaísmo, no qual a promessa de castigo, caso não fiquemos na linha, cai-nos sobre essa própria vida atual. O ser humano, esse ser maravilhoso, apenas porta-se moralmente se for coagido a fazê-lo, se for ameaçado com castigos: não é assim que as crianças são educadas?

Mas contra a veracidade desse tipo de afirmação (do clichê), abundam provas à exaustão. Quem leu os capítulos paralelos intitulados "laisse fair laisse passer" já está familiarizado com as barbaridades que os capitalistas perpetraram no século XIX na "civilizada" e "cristã" Inglaterra, enquanto a mesma enriquecia com o comércio de escravos (o qual depois iria condenar e reprimir no mundo todo). Agora, leitor, você acha que a maioria desses criminosos foi castigada pelos seus crimes, ou que, ao contrário, lucraram fabulosamente e seus descendentes vivem até hoje na opulência praticando crimes semelhantes, porém mais ocultos, adequados à farsa da "democracia"? É claro que é uma pergunta retórica.

Leitor, não seja estúpido. Não acredite em clichês, principalmente naqueles que pretendem pintar o mundo como um lugar justo e, na sua essência, bom. Nada mais falso do que isso. Não, o universo não conspira a nosso favor (nem da humanidade, nem de mim, nem de você): ele não está nem aí para nós. Não, a vida não é justa. Não, tudo não acaba sempre bem. Não, o bem não vencerá necessariamente o mal. Não, as coisas não mudam sempre para melhor. Não, você não merece ser feliz: você não merece nada. Não, não existem "pessoas de bem": todos são criminosos em potencial, bastando as circunstâncias adequadas para se manifestarem (na verdade todos nós somos, no mínimo, estelionatários: ficamos nos enganando mutuamente o tempo todo para obter algum ganho particular).

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(1) Certa vez eu conversei com a assistente social de um lugar onde trabalhei e ela me disse que "nós temos que crescer em todas as áreas da vida: familiar, profissional, psicológica e espiritual". Nós temos quê? TEMOS QUÊ????? Vá tomar no meio do olho do seu cu, sua bosta!! Essa gente de merda acredita que nós somos "livres" e são as primeiras a dizer que nós "temos que" seguir um comportamento padronizado e medíocre. Poucas pessoas foram inteligentes o bastante para me dar conselhos sem usar o maldito tem que.

E o que eles querem dizer exatamente com esse "tem que"? Bem, no caso dessa sabedoria da assistente social, presumo que esse "tem que" na verdade quer dizer que a maioria das pessoas "querem" crescer nessas "áreas da vida" (e querem porque são gado condicionado para querer isso); como a tal da assistente social é uma vaca, ela não é capaz de perceber que nem todas as pessoas querem essas merdas, portanto que esse discurso do "temos que" pode não fazer absolutamente sentido nenhum para um outsider (aliás, se ela não é um outsider - e certamente ela não é - é impossível para ela sequer entender o que faz sentido para um outsider).

Aproveito para fazer mais uma citação de Schopenhauer:

É contradizer-se - é muito difícil vê-lo? - chamar à vontade livre, para em seguida lhe impor leis, leis segundo as quais ela tem que querer. "Tem que querer!" (O mundo como vontade e como representação, Tomo I, § 53)

(2) Os sentimentos de culpa e de medo nos ajudam a entender a subserviência e mesmo o masoquismo que tantas pessoas apresentam. Enquanto a ideologia dominante insiste que as pessoas são livres e são senhoras de si mesmas, a verdade é que o indivíduo vive preso num sistema de escravidão múltipla e anônima. Por um lado, o indivíduo é escravo de instituições, como o capitalismo , a Igreja e o Estado; por outro, ele se deixa manipular por estas instituições pois é escravo de si mesmo: dos seus instintos, dos seus neurotransmissores, dos seus desejos, das suas vaidades, das suas ilusões.

A ideologia dominante trata de empurrar a culpa pelos "erros sistêmicos" (os erros na verdade não existem, apenas existem se o real é comparado com um ideal utópico) para o indivíduo, o qual é também incumbido da responsabilidade de mudar "tudo isso que aí está" (enquanto os fatores sistêmicos - reais causas desses problemas - permanecem imunes à crítica). (Aliás, a ideologia oficial chega mesmo a negar a existência de um "sistema": a sociedade é interpretada como um amontoado de indivíduos independentes, racionais, e mesmo "essencialmente bons". A Margaret Thatcher chegou a afirmar que "a sociedade não existe".) A impotência do indivíduo, confrontada com essa "obrigação" irrealizável gera medo e culpa. Os problemas sistêmicos aparecem, pois são assim tratados pela ideologia oficial, como problemas individuais. Dessa forma, uns vão para a cadeia, outros para o hospício, outros se afogam em drogas (lícitas ou não), outros nas igrejas, outros no trabalho, outros em formas "inofencivas" (para os donos do poder) de entretenimento (todos os hobbies possíveis e imagináveis), etc.

É compreensível que a maioria das pessoas se recuse a questionar as ideologias dominantes: essa é uma atividade perigosa (para o equilíbrio mental do indivíduo), custosa (é necessário mobilizar muita energia e gastar muito tempo para produzir uma ideologia substituta à dominante) e pouco gratificante (o único prazer que ela pode proporcionar ao indivíduo é a sensação de que ele conhece "a verdade" enquanto a grande "massa ignara" continua completamente alienada; assim ele se sente como uma espécie de alienígena, de espião ou de invasor, que está "disfarçado" como uma "pessoa comum").

E a alienação continua (escrevo isso aqui, nessa nota de rodapé, por falta de lugar melhor). Filmes como Transformers, O Grande Dave, O dia que a Terra parou, e Quarteto fantástico e o surfista prateado, entre outros (algo parecido e igualmente ridículo e infantil ocorre em O homem bicentenário) - e nós sabemos que a industria cultural em geral e o cinema em particular possuem funções catárticas, sublimativas e de promoção da ideologia dominante - trabalham com uma simbologia narcísica segundo a qual alienígenas apáticos - e inexplicavelmente ingênuos - chegam à Terra para rapidamente serem "seduzidos" pelo "charme" da humanidade. Esse processo de sedução, vale salientar, geralmente (e dos cinco filmes citados apenas o primeiro é exceção) passa por uma certa catexia libidinal recíproca desenvolvida (novamente de forma inexplicável) entre o alienígena e um dos protagonistas (femininos) do filme. Trata-se de uma simbologia ingênua utilizada como forma de justificação do establishment e da ferida vaidade do homo sapiens sapiens.

(3) Ser livre de escrúpulos, simpatia, honestidade e consideração pela vida alheia podem favorecer, em um limite razoavelmente amplo, o bom êxito do indivíduo pertencente à cultura pecuniária. (Thorstein Veblen, A Teoria da classe ociosa, capítulo IX)





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Tempore, quo cognitio simul advenit, amor e medio supersurrexit.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

LXXXVI - Uma breve crítica ao cristianismo e a sua mais atroz forma: o (neo)pentecostalismo - parte 13 de 16.


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§ 86






3.3. Juramos solenemente não reconhecer a verdade


A evolução das espécies, de Charles Darvin, é tida como "coisa do capeta" pelos clérigos neopentecostais. A maioria deles, para não arriscar dizer todos (o que provavelmente é verdade), acredita que essa teoria se resume a um único ponto: a afirmação infundada de que o homem "veio do macaco". Inclusive uma vez li em um jornal uma declaração de um vereador "crente" que dizia ser ridícula essa afirmação de que "o ser humano veio de um macaco fedorento". Se fosse apenas isso, seria fácil de refutar. Novamente a ignorância bate à nossa porta.

Refutar tal teoria é negar algo que possui profusão de incontestes provas. A mais óbvia está nos próprios fenótipos humanos - adequados, por modificações gênicas, ao meio no qual cada "raça" se desenvolveu, e não por desejo de invisível mão (ou mão visível, como acreditam os mórmons).

Outro exemplo de ignorância: Um certo pastor neopentecostal afirmou que, em seus "estudos" (leitura de um livro estadunidense comprado em livraria especializada em literatura religiosa) sobre a "hierarquia dos demônios", soube da existência de um demônio chamado Leviatã. O quê? Leviatã é personagem da mitologia persa - o que demonstra a confusão e o turbilhão de insanidade que permeia esses livros. Não seria muito pior ter nesta "hierarquia" nomes como "Arimã", "Górgonas" ou "Hades".

Nota para esse blog: como exemplo dessa ignorância, recomendo a leitura do seguinte texto da The Cutting Edge Ministries: Criaturas incríveis que desafiam a teoria da evolução. Saliente-se que as opiniões da The Cutting Edge Ministries são muito mais inteligentes e articuladas que as opiniões de um "crente" mediano brasileiro (eu ainda postarei nesse blog dois textos escritos por um "professor" da "escola de líderes" da igreja que eu freqüentei, intitulados "Como entrar no assunto da salvação" e "Desculpas, escusas e objeções ante o Evangelho").


3.4. O mundo é dos demônios


É chegada a hora de descrever dois fatos ocorridos comigo que chegam às raias do absurdo; o segundo, inclusive, considero a coisa mais absurda que já presenciei (1).

Em um evento organizado pela igreja neopentecostal que eu, então com 14 anos, freqüentava (por mero costume de família), teve-se a presença de um pastor que houvera trabalhado no estado do Amazonas. Não irei descrever o seu “depoimento”, irei direto ao ponto: o homem relatou um caso de cura, a cura do que, segundo ele, seria micose de uma habitante local, pelo poder “do nosso senhor Jesus Cristo”. Para piorar, o pastor, em suas intercessões, gritava, no intuito de promover a cura, “sai demônio!”. Assim, a expulsão de um demônio redundou na cura da senhora (é bom destacar que a cura não foi instantânea – apesar de existirem “testemunhos” desse tipo de cura – demorou semanas, senão meses).

Se existe alguma coisa que a ciência, após 400 anos de desenvolvimento, conseguiu comprovar sem sombra de dúvidas, certamente é que micose é causada única e exclusivamente por fungos. É de completa e abissal tosquidão acreditar, em pleno século XXI, que demônios podem ter participação na determinação dessa doença (e, por que não dizer?, de qualquer doença). Agora, se o indivíduo acredita nisso depois de ter freqüentado a escola, ou mesmo a faculdade (como eu já conheci) então ele é louco mesmo.

Ao fim do depoimento do senhor, fui perguntar a ele que sórdida relação havia entre fungos e demônios (e também entre demônios e qualquer tipo de doença). Você não ficará surpreso em saber que ele não tinha nenhuma resposta, e apenas afundou-se em seu animismo confuso acrescentando que “qualquer tipo de doença” pode ser “causada” pela possessão demoníaca. (E se um fiel de reputação ilibada adoecer? Então é um teste “do Senhor”, assim como ele fez com Jó. E se a pessoa morrer, e morrer com fé “no Senhor”? Então era porque já era a hora dele, já era a hora de ir para um lugar melhor, de cair fora desse mundo de merda, além de ser um “teste” adicional para os familiares. Aconteça o que acontecer: a culpa NUNCA é de deus, embora ele seja o criador de TUDO, inclusive do demônio e de uma humanidade imperfeita e, por isso mesmo, pecadora.)

Se o leitor possui alguma doença, deve desconfiar de si mesmo. Talvez haja um demônio, ou até mais de um (uma “legião”), em seu interior. O leitor deve correr ao templo (neo)pentecostal mais próximo, onde será devidamente curado por profissionais cuja reputação está acima de qualquer suspeita. Em troca desses benefícios, e também da salvação eterna, o leitor “apenas” precisa entregar o seu cérebro e mais 10% da renda mensal. Um belo negócio, não?

Mas ainda há coisa pior a relatar, que eu me obrigo a fazer pelo bem da verdade.

No mesmo evento, outro senhor (não sei se pastor ou fiel – eu compreensivamente não estava prestando muita atenção) deu seu depoimento, do qual eu transcrevo essas palavras literais: “Todos os dias eu saía de casa com óleo e ungia a rua e as casas dos vizinhos [porque a dele já estava pura], para tirar os espíritos de violência”. O quêêêêêêêêê?

Se fiquei estupefato com demônios causando doenças, o que dizer de “espíritos de violência”, que, segundo o depoente, são responsáveis pela violência que assola a nossa sociedade (principalmente nas periferias das capitais)? Como posso eu ter a petulância de querer refutar isso? A ignorância chegou a tal ponto que até fenômenos claramente sociais e econômicos são totalmente mistificados, associados a demônios. É a lógica do absurdo na sua mais radiante expressão.

Envergonhado de estar ligado a tanta miséria, rompi, no dia seguinte, minhas relações com igrejas pentecostais. Dias antes de completar 16 anos, eu estava livre do amor de Jesus. Aleluia!


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(1) Nota para esse blog: sete anos depois dessas palavras terem sido escritas, elas continuam verdadeiras.



Atenção: Como eu já disse no § 46, esse texto foi escrito em 2002, quando eu tinha 16 anos. Muito do que está escrito aqui já não representa com exatidão a minha atual forma de pensar. Porém creio que o texto ainda pode ser útil para aqueles que atualmente vivem situações (de apostasia) semelhantes às que eu vivi à época em que escrevi isso.





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Tempore, quo cognitio simul advenit, amor e medio supersurrexit.

sábado, 14 de novembro de 2009

### 27 - Significação da publicidade (à guisa de adendo ao capítulo LXXXIV).

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1. O imperativo e o indicativo publicitário.

A publicidade tem como tarefa informar as características deste ou daquele produto e promover a sua venda. Esta função "objetiva" resta em princípio sua função primordial (1).

Da informação, a publicidade passou à persuasão [persuasão racional, utiitarista], depois à "persuasão clandestina" (Vance Packard) [persuasão emocional, baseada em "informações periféricas"], visando agora a um consumo dirigido: temo-nos amendrontado ante a ameaça de condicionamento totalitário do homem e suas necessidades. Ora, pesquisas mostraram que a força de impregnação publicitária era menor do que se pensava. Rapidamente se verifica uma reação por saturação (as diversas publicidades se neutralizam umas às outras ou cada uma por seus excessos). Por outro lado, a injunção e a persuasão levantam todas as espécies de contra-motivações e de resistência (racionais ou irracionais: reação à passividade, não se quer ser "possuído", reação à ênfase, à repetição do discurso, etc.), em suma, o discurso publicitário dissuade ao mesmo tempo que persuade e daí parece que o consumidor é, senão imunizado, pelo menos um usuário bastante livre da mensagem publicitária.

Isto dito, a função explícita da publicidade não nos deve enanar: se ela não persuade o consumidor quanto a certa marca precisa (Omo, Simca ou Frigidaire), o faz quanto a outra coisa mais fundamental para a ordem da sociedade inteira. Omo ou Frigidaire não passam de álibis para esta função.

Assim como a função do objeto pode, por fim, não passar de um álibi para as significações latentes que impõe, assim também na publicidade - e com tanta maior ampliação por se tratar de um sistema de conotação mais puro - o produto designado (sua denotação, sua descrição) tende a não passar de um álibi, sob a evidência do qual se desenvolve toda uma confusa operação de integração.

Se mais a mais resistimos ao imperativo publicitário, por outro lado, em sentido inverso, nos tornamos mais sensíveis ao indicativo da publicidade, ou seja, à sua própria existência enquanto segundo produto de consumo e evidência de uma cultura. É nesta medida que "acreditamos" nela; o que nela consumimos é o luxo de um sociedade que se dá a ver como instância distribuidora de bens e que se "ultrapassa" numa cultura. Recebemos ao mesmo tempo uma instância e uma imagem.


2. A lógica do Papai Noel.

Os que negam o poder de condicionamento da publicidade (e dos mass media em geral) não descobriram a lógica particular de sua eficácia. Não mais se trata de uma lógica do enunciado e da prova, mas sim de uma lógica da fábula e da adesão. Não se acredita, deixa-se entretanto que ela fique perto. No fundo, a "demonstarção" do produto não persuade ninguém: serve para racionalizar a compra, que, de todo modo, precede ou ultrapassa os motivos racionais. Sem "acreditar" neste produto, acredito, porém, na publicidade que me deseja fazer crer. É a história do Papai Noel: as crianças não mais se perguntam sobre sua existência e não relacionam esta existência com os presentes que recebem como se se tratasse de um jogo de causa e efeito. A crença no Papai Noel é uma fabulação racionalizante que permite preservar na segunda infância a relação miraculosa de gratificação pelos pais (e mais precisamente pela mãe), que caracteriza as relações da primeira infância. Esta relação miraculosa, completada pelos fatos, interioriza-se numa crença que é seu prolongamento ideal. A ficção não é artifial, pois se funda no interesse recíproco que as duas partes mantém no sentido de preservar aquela relação. O Papai Noel em tudo isso não tem importância e a criança nele só acredita porque no fundo não tem importância. O que ela consome atrasés desta imagem, desta ficção, deste álibi - e em que acreditará mesmo quando deixar de crer - é o jogo da solicitude miraculosa dos pais e os cuidados que estes assumem em ser cúmplices da fábula. Os presentes apenas sancional tal compromisso (2) [além, é claro, de realizarem a mais-valia].

A operação publicitária é do mesmo tipo. Nem o discurso retórico, nem o discurso informativo acerca das virtudes do produto têm efeito decisivo sobre o comprador. O indivíduo é sensível à temática latente de proteção e de gratificação, ao cuidado que "se" tem de solicitá-lo e persuadi-lo, ao signo, ilegível à consciência, de em alguma parte existir uma instância (no caso social, que remete diretamente à imagem materna) que aceita informá-lo sobre seus próprios desejos, adverti-los e racionalizá-los a seus próprios olhos. Ele não "acredita" na publicidade mais do que a criança no Papai Noel. O que não o impede de aderir da mesma maneira a uma situação infantil interiorizada e de se comportar de acordo com ela. Daí a eficácia bem real da publicidade, segundo uma lógica que, embora sem ser a do condicionamento-reflexo, não é menos rigorosa: a lógica da crença e da regressão (3).


3. Gratificação e repressão: a dupla instância.

Precisamos ouvir através desta doce litania do objeto o verdadeiro imperativo da publicidade. "Veja como a sociedade não faz mais do que se adaptar a você a a seus desejos. Portanto, é razoável que você se integre nesta sociedade." A persuasão, como diz Packard, faz-se clandestina, mas não visa tanto à "compulsão" da compra e ao condicionamento pelos objetos, quanto à adesão ao consenso social que este discurso sugere: o objeto é um serviço, é uma relação pessoal entre você e a sociedade. Que a publicidade se organize a partir da imagem maternal ou a partir da função lúdica, de qualquer modo ela visa a um mesmo processo de regressão aquém dos processos sociais reais de trabalho, de produção, de mercado e de valor [ou seja, visa a reproduzir a reificação], que poderiam perturbar a esta miraculosa integração: este objeto, o senhor não o comprou, o senhor sim emitiu o seu desejo e todos os engenheiros, técnicos, etc., com ele o gratificaram. Numa sociedade industrial, a divisão do trabalho já dissocia o trabalho do seu produto. A publicidade coroa este processo, dissociando radicalmente, no momento da compra, o produto do bem de consumo: intercalando entre o trabalho e o produto do trabalho uma vasta imagem maternal faz com que o produto não seja mais considerado como tal (com sua história, etc.), mas pura e simplesmente como bem, como objeto [trata-se da temática da reificação]. Ao mesmo tempo que dissocia, no mesmo indivíduo, produção e consumo, graças à abstração maternal de um sistema muito diferenciado de objetos, a publicidade se afana, em sentido inverso, em recriar uma confusão infantil entre o objeto e o desejo do objeto, em retornar o consumidor ao estágio em que a criança confunde a mãe com o que ela lhe dá.

De fato, a publicidade não omite tão cuidadosamente os processos objetivos, a história social dos objetos senão para, através da instância social imaginária, melhor impor a ordem real de produção e de exploração. É aí que se precisa escutar, atrás da psicagogia publicitária, a demagogia e o disrcurso político, a tática deste discurso que, ainda neste plano, repousa sobre um desdobramento: o da realidade social em uma instância real e em uma imagem - a primeira se diluindo atrás da segunda, tornando-se ilegível e só dando vez a um esquema de absorção na ambiência maternal. Quando a publicidade em substância lhe propõe: "A sociedade adapta-se totalmente a você, integre-se totalmente nela", é claro que a reciprocidade é falsificada: é uma instância imaginária que se adapta a você, enquanto que, em troca, você se adapta a uma ordem bem real. Através da poltrona "que se adapta às formas do seu corpo", você esposa e se responsabiliza por toda a ordem técnica e política da sociedade. A sociedade se faz maternal para que melhor preserve uma ordem de coerção (4). Vemos por aí o imenso papel político que desempenham a difusão dos produtos e as técnicas publicitárias: asseguram propriamente a substituição das ideologias anteriores, morais e políticas. Melhor ainda: enquanto que a integração moral e política não se exercita sem problemas (necessitava lançar mão da repressão aberta), as novas técnicas economizam a repressão: o consumidor interioriza, no próprio movimento de consumo, a instância social e suas normas.

[Exemplo disso: Volkswagen Polo 'Cool' Commercial



A "rebeldia sem causa" (basta verificarmos como a sociedade de 50 anos atrás era muito mais machista, autoritária, patriarcal, teocrática e truculenta para percebemos que eles tinham muitas "causas" para serem rebeldes) dos jovens dos anos 1950 (início da Pós-Modernidade) contrasta com o bom-mocismo sem sal do jovem consumidor domesticado do início do século XXI. Eis o "progresso moral" propiciado pelo consumo de massas e pelo fim das "grandes causas" e das utopias questionadoras da ordem capitalista, tudo isso em paralelo ao aprofundamento do processo de subsunção do capital no ser social, processo que se erige ideologicamente como fatalidade histórica contra a qual qualquer resistência está condenada ao fracasso .]

Esta eficácia é reforçada pelo próprio estatuto do signo publicitário e pelo seu processo de "leitura".

Os signos publicitários nos falam dos objetos, mas sem explicá-los em vista de uma praxis (ou muito pouco): de fato remetem aos objetos reais como um mundo ausente. São literalmente "legenda", ou seja, põem-se aí para que sejam lidos. Se não remetem ao mundo real, tampouco o substituem exatamente: são signos que impõem uma atividade específica, a leitura. [Exemplo: na propaganda de absorvente, o sangue menstrual é azul como o céu primaveril.]

Se veiculassem uma informação, haveria leitura plena e transição para o campo prático. Mas desempenham outro papel: o de prova de ausência do que designam. Nesta medida, a leitura, não transitiva, organiza-se em um sistema específico de satisfação, no qual, entretanto, aparece sem cessar a determinação de ausência do real: a frustração.

A imagem cria um vazio, visa a uma ausência. Por isso é "evocadora". Mas é um subterfúgio. Provocando um investimento, ela o corta ao nível da leitura. Faz convergir as veleidades flutuantes sobre um objeto que mascara, ao mesmo tempo que o revela. Ela engana, sua função é mostrar e enganar. O olhar é presunção de contato, a imagem e sua leitura são presunção de posse. A publicidade assim não oferece nem uma satisfação alucinatória, nem uma mediação prática para o mundo: a atitude que suscita é a de veleidade enganada - empresa inacabada, surgir contínuo, engano contínuo, auroras de objetos, auroras de desejos. Todo um rápido psicodrama se desenrola na leitura da imagem. Ele, em princípio, permite ao leitor assumir sua passividade e transformar-se em consumidor. De fato, a profusão de imagens é sempre usada para, ao mesmo tempo, elidir a conversão para o real, para alimentar sutilmente a culpabilidade por uma frustação contínua, para bloquear a consciência mediante uma satisfação sonhadora. No fundo, a imagem e sua leitura não são de modo algum o caminho mais curto para um objeto, mas sim para uma outra imagem. Assim se sucedem os signos publicitários como as auroras de imagens nos estados hipnagógicos.

Precisamos reter bem esta função de omissão do mundo na imagem, função de frustação. Somente isto nos permite compreender como o princípio de realidade omitido na imagem nela, entretanto, transparece eficazmente como repressão contínua do desejo (sua espetacularização, seu bloqueio, sua decepção e, finalmente, sua transferência regressiva e derrisória num objeto). Será aqui que apreendemos o acordo profundo do signo publicitário com a ordem global da sociedade: não é mecanicamente que a publicidade veicula os valores desta sociedade, é, mais sutilmente, por sua função ambígua de presunção - algo entre a posse e a ausência de posse, ao mesmo tempo designação e prova de ausência - que o signo publicitário faz passar a ordem social em sua dupla determinação de gratificação e repressão (5).

Gratificação, frustação: as duas vertentes inseparáveis da integração. Sendo legenda, cada imagem dissipa a polissemia angustiante do mundo. Mas, para ser legível, ela se faz pobre e expedita - ainda suscetível de muitas interpretações, restringe seu sentido pelo discurso que a subintitula, como uma segunda legenda. E, sob o signo da leitura, sempre remete a outras imagens. A publicidade, por fim, tranqüiliza as consciências por uma semântica social dirigida, em último termo, por um único significado, que é a própria sociedade global. Esta assim se reserva todos os papéis: sucita uma multidão de imagens, cujo sentido, por outro lado, esforça-se em reduzir. Suscita a angústia e a acalma. Cumula e engana, mobiliza e desmobiliza. Sob o signo da publicidade, instaura o reino de uma liberdade do desejo. Mas nela o desejo nunca é efetivamente liberado - seria o fim da ordem social - o desejo só é liberado na imagem e em doses suficiente para provocar os reflexos de angústia e de culpabilidade ligados à emergência do desejo. Aliciada pela imagem, mas enganada e culpabilizada também por ela, a veleidade de desejo é recuperada pela instância social. Profusão de liberdade, contudo imaginária, contínua orgia mental, contudo orquestrada, regressão dirigida em que todas as perversidades são resolvidas em favor da ordem: se, na sociedade de consumo, a gratificação é imensa, a repressão é também enorme; recebemo-las conjuntamente na imagem e nos discursos publicitários, que fazem o princípio repressivo da realidade atuar no próprio coração do princípio de prazer.




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(1) Não esqueçamos porém que as primeiras publicidades diziam respeito às poções milagrosas, aos remédios de senhoras idosas e outros truques: informação, por conseguinte, porém das mais tendenciosas.

(2) Os placebos são substâncias neutras que os médicos administram aos doentes psicossomáticos. Não é raro que estes doentes se restabeleçam tanto por causa de tal substância inativa quanto por efeito de um medicamento real. Que integram, que assimilam estes doentes através dos placebos? A idéia da medicina + a presença do médico. A mãe e o pai ao mesmo tempo. Ainda neste caso a crença lhes ajuda a recuperar uma situação infantil e a resolver regressivamente um conflito psicossomático.

(3) Seria necessário ampliar esta análise para as comunidades de massa em geral, mas não é este o lugar oportuno.

(4) Por detrás deste sistema de gratificação, vemos ademais reforçarem-se todas as estruturas de autoridade: planificação, centralização, burocracia - partidos, Estados, aparelhos reforçam sua dominação a partir desta vasta imagem maternal que toram cada vez menos possível a contestação real.

(5) Esta análise é transponível no sistema dos objetos. É porque o objeto é ambíguo, é por não ser apenas um objeto, mas sempre, ao mesmo tempo, prova de ausência da relação humana (assim como o signo publicitário é prova de ausência de objeto real), que o objeto pode, também ele, desempenhar um papel potente de integração. A especificidade prática do objeto, contudo, faz a prova de ausência do real seja aí menos acisada que no signo publicitário.



(Jean Baudrillard, no livro "O sistema de objetos")





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sábado, 7 de novembro de 2009

### 26 - Um sonho de liberdade.

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Como se sabe, os conceitos de liberdade e igualdade formam os slogans centrais do Iluminismo. Desses ideais, todavia, o liberalismo não foi o único a se apropriar. Paradoxalmente, eles desempenham no marxismo e no anarquismo um papel tão grande quanto... E também para os movimentos sociais contemporâneos eles possuem um alto valor ideológico.

A esquerda fita os ídolos da liberdade e da igualdade como o coelho fita a cobra. A fim de não ser cegado pelo esplendor desses ídolos, recomenda-se dirigir o olhar para os seus fundamentos sociais. Marx [1818-83] desvendou esses fundamentos já há mais de cem anos. Trata-se da esfera do mercado, da circulação capitalista, da troca de mercadorias, da compra e venda universais.

Nessa esfera predomina uma espécie bem determinada de liberdade e igualdade, que se refere única e exclusivamente a vender o que se quer - supondo que se encontre um comprador -, e comprar o que se quer - supondo que se possa pagar.

E só nesse sentido predomina também a igualdade, isto é, a igualdade dos possuidores de mercadorias e de dinheiro. Nessa igualdade não importa a quantidade, mas a forma social comum. Para o "cent" comprar não é o mesmo que para o dólar; mas tanto faz se é "cent" ou dólar, em termos qualitativos predomina a igualdade da forma dinheiro. Na compra e venda não há senhores e escravos, ordem e obediência, mas apenas as pessoas livres e iguais do direito. Tanto faz se homem ou mulher ou criança, tanto faz se branco ou preto ou marrom - o cliente é bem-vindo em todas as circunstâncias. A esfera da troca de mercadorias é a esfera do respeito recíproco. Onde se realiza uma troca comercial de mercadoria e dinheiro não há violência. O sorriso burguês é sempre um sorriso de vendedor.

O sarcasmo de Marx se refere ao fato de essa esfera do mercado constituir somente um pequeno fragmento da vida social moderna. A troca de mercadorias ou a circulação tem por pressuposto uma esfera bem diferente, nomeadamente a produção capitalista, o espaço funcional da economia empresarial ou do "trabalho abstrato" (Marx). Aqui valem leis bem diferentes daquelas da circulação das mercadorias, aqui o sorriso do vendedor se congela no esgar cínico do feitor de escravos ou do guarda da prisão.

No trabalho, assim já escrevia o jovem Marx, o trabalhador "não está em si, mas fora de si". A liberdade na produção de mercadorias é tão pequena que nem sequer pode determinar o conteúdo, o sentido e o fim do que é produzido ali. Tampouco os proprietários de capital e os empresários possuem essa liberdade, visto que eles estão sob a pressão da concorrência. Daí a produção seguir inteiramente os princípios de ordem e obediência.

Onde o regime da economia empresarial é especialmente "eficiente", as trabalhadoras e os trabalhadores nem sequer podem ir urinar com autonomia. Essa severidade produtiva ganha dimensões extraordinárias justamente no neoliberalismo. Só na aparência a liberdade e a igualdade da circulação, por um lado, e a ditadura da produção empresarial, por outro, se contradizem.

De um ponto de vista puramente formal, as trabalhadoras e os trabalhadores são não-livres na produção justamente porque antes efetivaram sua liberdade no mercado na qualidade de possuidores de mercadoria, isto é, venderam sua força de trabalho. Naturalmente, essa liberdade de vender a própria força de trabalho se deve a uma coerção, logo a uma não-liberdade: a modernização criou as condições históricas em que não mais há nenhuma outra possibilidade de se conservar em vida.

É preciso ou comprar força de trabalho e empregá-la para o fim em si mesmo da valorização do capital ou vender sua própria força de trabalho e deixar-se empregar para esse fim em si mesmo. Enquanto havia ainda produtores independentes (camponeses e artesãos), não existia um mercado universal, a maior parte das relações sociais se desenrolava em outras formas. A ascensão do mercado universal foi acompanhada pelo declínio dos produtores independentes. Só porque há mercado de trabalho, ou seja, só porque a força de trabalho humana assumiu a forma de mercadoria, todos os outros bens são comercializados também como mercadorias.

Portanto, a esfera da liberdade e da igualdade só existe de modo geral porque a esfera da não-liberdade se constituiu na produção. É por isso que a liberdade universal se realiza também na forma da concorrência universal.

Esse problema se estende ao âmbito da reprodução pessoal ou da privacidade, onde as mercadorias são consumidas e as relações sociais íntimas têm o seu lugar. Aqui há muitas atividades e momentos da vida que não se reduzem à produção de mercadorias (economia doméstica, educação dos filhos, "amor" etc.).

No processo de modernização, a responsabilidade por esses aspectos foi impingida, no plano material, no sociopsíquico e no simbólico-cultural, às mulheres, e justamente por esse motivo elas foram socialmente desvalorizadas: trata-se de momentos da vida social que não são "dignos de dinheiro", isto é, são de segunda classe ou de valor menor no sentido da valorização do capital. Essa "cisão" (Roswitha Scholz [feminista alemã]) não se limita a uma esfera secundária demarcável: atravessa todo o processo de vida social.

Assim, no interior da produção de mercadorias, as mulheres são mais mal pagas em regra, e é relativamente raro que cheguem a posições de liderança. Nas relações pessoais predomina um determinado código dos sexos que implica para as mulheres uma relação de dependência estrutural, mesmo que esta seja algumas vezes quebrada ou modificada na pós-modernidade. De modo análogo, a parte não-branca e não-ocidental da humanidade é abandonada a uma subordinação estrutural, formulada de maneira racista já no Iluminismo.

Única e exclusivamente na esfera da circulação, do mercado, todas as relações próprias de uma "dominação do homem sobre o homem" parecem extintas. Essa esfera hipócrita da liberdade e da igualdade não se baseia, no entanto, somente em estruturas de dependência; em um sentido direto, ela se constitui também como uma mera função para o fim em si mesmo da valorização do capital. Pois o mercado universal não serve, em crassa oposição ao intercâmbio de produtores independentes entre si, à satisfação recíproca das carências.

Pelo contrário, ele é somente um estado de agregação ou um estágio de transição do próprio capital. Na venda o valor abstrato se "realiza" como dinheiro, e exatamente nisso consiste a função da troca aparentemente livre. O capital monetário originário, que se metamorfoseia em mercadorias por meio da produção, retorna à sua forma de dinheiro multiplicado pelo lucro. É nisso que se manifesta o caráter do capital como fim em si mesmo, isto é, fazer do dinheiro mais dinheiro e assim acumular "riqueza abstrata" (Marx) em um progresso ao infinito.

Portanto, ao efetivarem sua liberdade e igualdade na esfera da circulação, as pessoas não fazem nada mais que efetuar a "automediação" do capital, ou seja, fazem com que a mais-valia produzida ou o lucro deixe a forma mercadoria e se transforme de novo em forma dinheiro. Por isso a liberdade e a igualdade da circulação não são nada mais que uma engrenagem para o fim da "realização" do capital. Cada ato de liberdade precisa efetuar uma espécie de operação de bombeio para levar o capital do estado de agregação "mercadoria" ao estado de agregação "dinheiro".

A liberdade burguesa moderna possui, portanto, um caráter peculiar: ela é idêntica a uma forma superior, abstrata e anônima de servidão. A emancipação social seria libertar-se dessa espécie de liberdade, em vez de "realizá-la". As coisas não são melhores com o conceito de igualdade, que implica abertamente uma ameaça, a de espremer os indivíduos em uma única e mesma fôrma.

A modernização enfiou a humanidade, por assim dizer, em um uniforme homogêneo de sujeitos de dinheiro. Mas atrás disso se ocultam relações de dependência estrutural. Na realidade, as carências, os gostos, os interesses culturais e os objetivos pessoais dos indivíduos jamais são "iguais"; eles foram somente submetidos à igualdade da forma mercadoria. Por isso, como disse [o filósofo alemão Theodor] Adorno [1903-1969], emancipador seria poder ser "desigual em paz".

Desde o Iluminismo a igualdade recebeu seu falso nimbo por meio de um truque de prestidigitação dos ideólogos burgueses. O significado do conceito da desigualdade foi deslocado da pura diversidade dos indivíduos para a subordinação de um indivíduo ao outro. O que em si mesmo é mera expressão da peculiaridade individual, isto é, a desigualdade, aparece de repente como expressão da dependência. E vice-versa: o que em si mesmo é expressão da coerção uniforme, isto é, a igualdade, aparece de repente como expressão da libertação da dependência. Temos de lidar aqui, na ideologia moderna, com um caso típico de linguagem orwelliana.

Na realidade, a desigualdade nada tem a ver com a dominação, e, a igualdade, nada a ver com a autodeterminação. Antes o contrário: a própria igualdade na modernidade é uma relação de dominação.

O resultado é uma permanente contradição da ideologia moderna. De um lado, a esfera da circulação é separada do contexto inteiro da reprodução capitalista e elevada a ideal. De outro, a ditadura factual na produção e a desvalorização estrutural do feminino são declaradas como "lei natural objetiva" intransgredível. Incessantemente um aspecto precisa ser jogado contra o outro; e justamente em razão disso se consolidam nas cabeças as relações sociais. Liberdade e igualdade representam exatamente o que Adorno designou de "contexto de cegueira".

E a esquerda herdou tal cegueira juntamente com o aparato conceitual do Iluminismo. Particularmente os utópicos, socialistas democráticos e libertários, anarquistas e dissidentes dos países do socialismo de Estado apelaram sempre para os ideais de liberdade e igualdade, sem reconhecer que eles se restringem à esfera da circulação e sem enxergar o nexo interno de liberdade e não-liberdade existente na modernidade.

Hoje a crítica social parece mais do que nunca recair nos ideais da circulação. O que tem causas estruturais. A crise mundial provocada pela terceira Revolução Industrial expulsa um número cada vez maior de pessoas da produção real, convertendo-os forçosamente em agentes da circulação. Como operadoras de serviços baratos de todo tipo, como vendedoras, comerciantes de rua e até como pedintes, elas próprias vivenciam agora, de modo paradoxal, a esfera da liberdade e da igualdade como o jugo de um trabalho secundário; a ditadura da produção se estende a atividades cada vez maiores da circulação, até chegar ao empresariado da miséria. Liberdade e não-liberdade coincidem aí de imediato; mas, ideologicamente, esse paradoxo é tanto mais assimilado nos termos dos ideais da circulação.

Na medida em que os indivíduos se vivenciam a si próprios como pequeno-burgueses e como negociantes de seu "capital humano" cada vez mais em circulação, o utopismo da troca de mercadorias retorna, depois do fim do socialismo do trabalho, em uma versão neopequeno-burguesa. Em uma sociedade em que permanentemente todos querem empurrar a todos alguma coisa e em que as relações sociais se dissolvem em um bazar universal, os crescentes fenômenos de crise são percebidos pela retícula da existência vivida na circulação.

De maneira francamente compulsiva, uma intelligentsia de vendedores de si próprios interpreta os problemas oriundos da terceira Revolução Industrial segundo o modelo das relações da circulação: "Um possuidor de mercadorias afeta o outro". Mesmo a superação da produção de mercadorias é pensada conforme as categorias da "troca eterna".

Os indivíduos, cuja constituição não é refletida de forma crítica e que só aparentemente são "independentes uns dos outros" na esfera da circulação, devem presentear reciprocamente seu "favor" e "mostrar boa vontade", em vez de concorrerem entre si; tudo como se o problema não residisse no plano do modo de produção e da vida social, mas sim no plano de uma "patologia" representável em termos individuais, a qual poderia ser "curada" por medidas pedagógicas e terapêuticas.

O sorriso falso dos vendedores é estilizado no idealismo de um tratamento mútuo simpático, não mais marcado pela concorrência, como se fosse factível uma transformação social passando ao largo do modo substancial de produção e de vida e lançando mão somente dos construtos utópicos relativos ao comportamento pessoal, os quais todos têm sua raiz na esfera idealizada da circulação - sendo que os utopistas neopequeno-burgueses se nomeiam a si próprios como "médicos que estão junto do leito do sujeito".

Propagada em muitos países, a ideologia dos escambos praticamente não representa nada mais do que uma economia de hobby; onde ela foi praticada em grande escala, como há pouco tempo durante a crise argentina, fracassou grandiosamente. Ainda mais insuficiente parece a tentativa apoiada nas investigações do etnólogo francês Marcel Mauss [1872-1950], sobretudo em sua principal obra, o "Ensaio sobre a Dádiva", de salvar da concorrência a "troca eterna" segundo o modelo das assim chamadas sociedades arcaicas e transformá-la em uma permuta de presentes, ou seja, em uma espécie de Natal permanente.

Essa idéia de uma "economia do presente" não pode, segundo sua essência, ir além do âmbito das relações pessoais imediatas; daí ela ignorar a escala das forças produtivas sociais e dos contextos sociais altamente organizados. Seria ridículo se um indivíduo dissesse ao outro: se me "doas" um transplante de rim, eu te "dôo" uma debulhadora, caso sejas honesto. O problema não é "mostrar boa vontade" de maneira recíproca e individual, mas sim aplicar com sentido, e não de forma destrutiva, as potências sociais (infra-estruturas, sistemas de formação e ciência, sistemas da produção industrial e da imaterial).

As utopias da circulação, ao contrário, buscam uma solução sempre e primariamente no plano dos modos de comportamento individual. Isso significa frear o cavalo pelo rabo. Em vez, mediante uma revolução social da produção e do modo de vida, tornar supérflua a circulação de mercadorias e a concorrência nos mercados ligada a ela, exige-se do sujeito isolado da circulação que ele realize a pretensa ontologia da troca em uma forma depurada. A concorrência deve ser "moralizada".

A emancipação social aparece então como mera conseqüência de uma utopia da liberdade e igualdade do sujeito da circulação, supostamente "realizada" em pequenos grupos. A questão da solidariedade prática nos contextos sociais é ideologizada e convertida em um idealismo pedagógico mentiroso, muitas vezes psicoterapêutico, o qual pode se tornar simplesmente o terror da gentileza e do controle social recíproco (por exemplo, segundo o modelo de seitas religiosas). Esse utopismo neopequeno-burguês do capital humano em circulação está condenado ao fracasso tanto quanto todas as utopias anteriores.


(Robert Kurz, sociólogo alemão, autor, entre outros, dos livros "Com todo vapor ao colapso", "O colapso da modernidade", e "Últimos combates".






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Os agentes econômicos respondem a estímulos na sua ação racional (i.e., ação capaz de formular estratégias e que não erra sistematicamente) e voltada ao seu interesse próprio (i.e., que busca a maximização de sua satisfação por meio do atendimento ótimo das suas necessidades).